sábado, 28 de agosto de 2010

A passagem

Eu estava morto
Morto como um morto

O sangue coagulado no peito
Como uma flor nojenta

Os olhos parados
Eram um espelho fosco

Os olhos parados
E o nada do outro lado

Eu me apagara
E ostentava um sorriso feliz

Nada mais triste que um idiota
Que não conta nenhuma história

Eu era o idiota
Que já não se importa

O trânsito parou
Porque eu estava morto

Porque eu era outro
Eu já não era

Eu retornava de lugar nenhum
Eu retornava com uma flor na boca

O mundo tinha as mesmas cores
Eu é que não tinha cor

Eu não tive nenhuma dor
Na passagem

Eu comprara passagem
De ida e volta

E nem soubera
Do embarque ou desembarque

Apenas perdera a cor
Com o sangue

Talvez um pouco da alma
Ou toda

Comprara alma nova
E descobrira que toda alma

É velha de séculos
Roupa de um morto maior

Tábua rasa
A vida é a vida meu bem

Viver é dar de ombros
Ao morto que fomos

Ou somos
O morto e o morto

A mosca sobre o olho
Inquieta

Como dói
Uma mosca

Havia um sol de fim de tarde
O sol do morto

O sol do cemitério
A flor dos túmulos

Às cinco em ponto da tarde
Que hora terrível meu Lorca

Fazia falta um caixão
Talvez eu me sentisse morto

Como é mesmo estar morto?
É preciso um caixão

Um caixão e o sol das cinco da tarde
É preciso baixar à sepultura

É preciso um pouco de terra
Uns tijolos e a argamassa

O suor escorrendo no olho do pedreiro
O público muito pouco

Porra alguém pensa
Porra eu digo

Que o morto não era o morto
Feio como um morto

Não era o morto
Como um ladrão no sono

O ladrão que anda torto pelos cantos
Nem sabe o que quer no escuro

Esbarra nos móveis
Faz um barulho do outro mundo

O morto é o ladrão no sono
Levou a minha alma

Não havia sol às cinco da tarde
Não havia túmulo

Não havia público
Não havia caixão

Muito sem graça
Passei manteiga na cara

E era outro
Era outro sem ter sido

O morto
Nem o vivo.

__________

Poema de "História a Minha morte", 2003.

__________

Um comentário:

  1. Nossa que poema LINDO!

    José Carlos!

    Nunca tinha lido nada igual. Este eu gostaria de ter feito, mas jamais o faria, posto que anseio mais a morte que a vida.

    E este poema só faz quem gosta da vida.

    BRILHANTE!!!!!!!

    Aplausos!

    Mirze

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