domingo, 27 de fevereiro de 2011

Crepúsculo


Eu trazia a cabeça embaixo do braço
sorrindo
com uma serpente entre os dentes
e uma flor
do paraíso terrestre

Um bando de pássaros celestes
desenhou um lenço de adeus no céu

A paisagem era verde
com tons de ouro e negro
a fumaça espiralada
do morro tossindo

As laranjas explodiram dentro das garrafas
o sol tomava banho no lago
com as últimas garças no lombo


quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Moisés novamente é salvo das águas




Jogaram do alto da ponte
um bebê numa sacola plástica.

Saiu boiando riacho abaixo
na água suja de garrafas pets e fezes
até ancorar numa touceira de capim.

Do alto da ponte eu vi
uma mãozinha sair da sacola plástica
e se agarrar numa haste de capim.

Nunca vi maior vontade de viver
do que a deste Moisés salvo das águas
neste aflito início do século 21.



terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

A ESTÁTUA DE GESSO


 
 
Vou falar mais uma vez da estátua de gesso
que eu quebrei quando era criança.
Disse à minha mãe que o culpado foi o vento,
eu não era um artista,
nem sabia o que era isso.

Esse é o destino dos poemas: foi o vento.
Os poetas nem sabem mais o que é isso.
Gozado como continuam fazendo poesia
com um ar de intelectuais
que dominam a sua arte
de intelectuais.
Como se a arte fosse um objeto intelectual.
Pior, como se isso fosse uma condição sine qua non
para um poema ser um poema.

Havia um espelho por detrás da estátua de gesso.
O espelho refletia a estátua de gesso
e refletia a minha cara de espanto e medo infantil.
Eu não sabia,
mas começava a conhecer o espanto e o medo –
essas condições para um poema ser um poema.

Há outras, mas o mundo caminha para o fim tão depressa
que não há tempo para enumerá-las
nem adianta.


sábado, 19 de fevereiro de 2011

SÓ A FACA




Eu até gostaria do meu trabalho
mas não sou besta
e os outros são o inferno
Sartre é um desastre
com as mãos sujas de sangue

A era da inocência acabou
faz de conta que existe o amor
que Deus pode me salvar
faz de conta que o mundo tem solução
faz de conta que a era da inocência não acabou

O mal sai de mãos dadas com o bem
somos todos bons companheiros
todos bons companheiros até os traidores

Na esquina olha para trás
veja se o rabo está no lugar
mas todos têm o rabo preso
o jeito é cortar o rabo

o jeito é cortar fora o rabo
a faca
como tudo na vida





quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Os bárbaros



Os bárbaros vão chegar, disse Konstantinos
     Kaváfis,
e agora é a hora.
Descerão dos morros, subirão dos esgotos
como ratos vorazes
os bárbaros, a escória da sociedade.

A cidade é um vulcão à espera da erupção.
A cidade doente vai explodir.
Não aguenta mais, não aguenta mais
à espera dos bárbaros, que vão chegar.

O ódio incha a cidade, a ambição
incha a cidade.
Chegamos à exaustão,
só falta a explosão.
Só falta o vulcão entrar em erupção.
Só falta a vinda definitiva dos bárbaros.

Os ratos vão chegar, as baratas
       indestrutíveis vão chegar.
Uma luz brilha no horizonte:
é o dia da libertação.
Os bárbaros vãos chegar,
os bárbaros vão chegar.




quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Olha os lírios do campo


Olha os lírios do campo
com os pássaros e as abelhas
olha o trigo maduro como ouro
pronto para se transformar em pão

Os homens pisaram os lírios
os homens pisaram o trigo
mataram os pássaros e as abelhas
acabaram com o mel e com o pão

Os cachos de uva estouravam nas videiras
vieram os homens com os tanques de guerra
o vinho se fez sangue sobre a terra
a terra se fez um lagar de pus e bolor

Olha os lírios do campo e o trigo maduro
olha as videiras carregadas de uva
olha o mel das abelhas ao sol
escuta o canto dos pássaros pela última vez

Saboreie o gosto da vida enquanto é tempo

                                                  (Gregório Vaz)

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

O DILÚVIO



O DILÚVIO

a menina está de cama com febre
e sonha com um dilúvio
a casa navegando como a arca de Noé
quando acordou a casa navegava
com alguns bichos e ela

passou uma mulher com um cachorrinho
mas não passou Tcheckhov
nem Moby Dick
a cultura morreu afogada

Quando chegou Moisés já era tarde
nem o cabelo de Sansão se salvou
nem a língua de Dalila
ou a bandeja de prata de Salomé

a menina ficou abandonada no mundo
sozinha para criar uma outra humanidade
mas feliz da vida porque estava viva
e antes só do que mal acompanhada

Gregório Vaz


quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

História




Eu já fui uma criança feliz
sem ideais
nem palavras
ou outros acessórios

As árvores me bastavam
os galhos e os troncos carregados
de pássaros e de jabuticabas

O jardim em frente de casa
tinha todas as flores
minhocas lagartos e lagartixas

Eu tinha um cavalo alazão
tinha até um unicónio
rodeado de mil borboletas

De repente fiquei sábio como o orvalho
sobre o estrume no pasto das vacas
como se eu conhecesse o mistério
de Deus e do universo agrário

Tudo era agrário naquele tempo
tudo deveria ser ágrafo naquele tempo
quando nem o tempo existia

Meu pai fazia vassouras na cozinha
contando histórias do novelo da memória
com a sabedoria dos velhos patriarcas

Minha mãe tinha uma arca de costura
costurava os caminhos da vida
com a diligência de uma profetiza

Um dia acordei fora de casa
fora de qualquer espelho
ainda inundado de luz

mas cego
um cego guiado por um cachorro cego

Gregório Vaz


quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Crianças




Três crianças mendigas me cercam
Estou comendo pedras, digo
Também queremos, me dizem
Pedra tem sabor de pão em boa companhia

As crianças quebraram os dentes
ficaram iguais aos meus
dentes lascados lembrando pedras lascadas
pedras brancas esfarelando-se como giz

Como as crianças são boa companhia
eu me disse com ganas de matar uma a uma
Para que tanto sofrimento? Melhor a morte
pelo menos com a morte nasceriam anjos

 

domingo, 6 de fevereiro de 2011

Merecimento



A cada um o que merece
um tiro na testa
uma facada na barriga
uma forca
língua arrancada a alicate

A cada um o que merece
passeio entre os túmulos
um silêncio de morte
nenhuma cigarra
nenhuma árvore triste

A cada um o que merece
a morte é suave ao entardecer
a mulher me abraça, é a morte
a criança me beija, é a morte
o velho me abençoa, é a morte

A cada um o que merece
todos chegamos ao fim
E se o fim estiver no começo?
Por que esperar tanto?
Ouça o meu canto feliz
A cada um o que merece

A vida é um risco de giz
quem passar por baixo está morto


sábado, 5 de fevereiro de 2011

RUÍNAS



 
As ruínas da cidade foram salgadas
para que se conservasse a sua ignomínia

O que esperar dos derrotados
senão o sal nas pedras ao vento do mar?

Depois de Cartago destruída
para Roma tudo é possível

Todas as palavras são parábolas
batem no muro branco e voltam

As parábolas violam
as violetas e as aranhas

Na minha língua ainda sinto o sal
e alguma palavra seca


sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

O PRISIONEIRO



Sou um número na prisão
todos me olham com desprezo
a morte é nada
eu amo a morte

Dias e noites atrás das grades
no pátio cinza
ouvindo os gritos silenciosos
e gritando silenciosamente

Quando acabar a minha pena
começará a minha pena
sou ninguém
serei ninguém completamente


quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

MUITO PRAZER



O maior prazer do mundo
é o corpo da mulher
depois um bom prato de comida
ou antes, que ninguém é de ferro
e saco vazio não para em pé

Gosto de olhar o céu
mesmo atrás das grades
o céu é sempre azul
mesmo quando chove
gosto demais da chuva
mesmo quando mata gente
a morte é uma consequência de estar vivo

Gosto de um bom livro
quem lê um livro conhece um homem
ideias grandezas misérias
toda uma concepção do mundo
embutida em umas quantas páginas
inúteis, mas tudo é inútil neste mundo

Gosto do meu cachorro
que não tenho
tenho pavor de cachorro
não suporto gato, esse ar de dono do lar
gosto do meu canário
o único mal é a prisão
eu até o soltava se isso não o matasse
o fim da prisão é a morte da alma

Terrível isso
o fim da prisão é a morte da alma

Gosto de música
gosto de uma árvore
mas sobretudo gosto de gaiola
se não fosse a gaiola o que seria da alma?

ou quebrada a gaiola a alma estaria livre enfim?


terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Identidade



Quem sou?
Eu sou um Gregório Vaz
ou esse é meu nome
mas o que é um nome?
o que é um homem?

O que me define?
Preciso definir-me?
Procuro-me no espelho
não me encontro

Não tenho carteira de identidade
não tenho identidade
mais que a identidade fictícia que me deram
mas você que tem identidade
que pensa que sabe quem é
sabe mais do que eu?

Quebrei o espelho
vivo quebrando espelhos
gosto de imaginar-me multiplicado
nos mil cacos do espelho
que sou mil e ninguém

Gosto da multidão
sou mil na multidão
e ninguém 

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