domingo, 20 de dezembro de 2009

Poética do podre



4

A náusea é uma cegonha chata
um espelho baço, um chato
no sovaco, o enfado
zunindo, nitrindo.
A náusea é a cidade
chata, baça, no sovaco
o enfado das palavras
o chato nos olhos colhido
com colher de pau
pitada de mel e sal.
A náusea é isto
os homens rotos, ocos, de palha
o humano no cano
na atra culatra
da sarna, do ranho
do mofo
do nada. A náusea
é o morcego
morto de medo.
E são as palavras
cavas, baças, chatas
a nossa agra
face.

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Poética do podre



3

O asco é o meu pão cotidiano.
Oh sensibilidades. O óleo do tráfego
denso escorre. Vós que passais
virgens ao sol detergente
burilo o poema com o cinzel do meu sarro
não vos posso dar
senão o vômito.

sábado, 21 de novembro de 2009

Poética do podre




1

A cidade se enrosca
na garganta
dos homens, sangra
abóbora podre
sem nome, angústia
convulsa. Ladra
cadela no cio.
Galope
de vômitos frios
oh micróbios
cospe
engole
dá na mesma
é sempre a mesma
mole massa sebosa
escarro na tumba
tombo no ultraje
traje de quimera
e gosma, gosma
que corta, estraçalha
o ser. A linguagem
que o ser, ce cangalhas
procura.


2

Quero o podre
ao sol. Saudável

luz rebenta, como o trigo
com o olhar. Quero o podre

exposto, doendo, remoendo
os ventres, a fome. Quero a fome

a luz nos ventres, o parto
da dor. O olhar rebenta

o podre, vau, vulgo, vulva
brotos brotam, não? Por isso

por aquilo, de vão a vão
bojo, cós, fole e podre a podre

a esperança caminha.

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(cont.)

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Soneto à margem do tédio




Eu sou o que morreu assassinado
numa noite de orgia, sobre um túmulo,
entre uma deusa fria e um triste súcubo,
por sete negras lanças transpassado.

O desejo de amar foi meu pecado:
eu amei com o sangue erguendo o músculo
sem detença, sem sombra de crepúsculo.
Por acerto, morri crucificado.

Não foi o ledo engano camoniado,
mas o cruel festim dos assassinos
numa história que nada tem de humano.

Os juízes com caras de suínos,
cantaram o Te Deum a todo pano,
pois se consomem nossos desatinos.

Sete sonetos em estado de graça, in Exílo, 1983.

domingo, 15 de novembro de 2009

Soneto do amoroso desiludido



Procurei de prostíbulo em prostíbulo
o teu amor, que a terra há de comer,
e o sexo, mas com muito mais prazer.
O que encontrei? O meu próprio patíbulo.

Visitei as alcovas mais sagradas,
em algumas gozei já no vestíbulo.
Visitei o mais imundo cubículo
e todas as mulheres depravadas.

A vida pode ser procura inócua,
o que se encontra é sempre a mesma nódoa.
A glória às lendas do sublime amor!

Que eu sempre encontro, sem tirar nem pôr,
na encruzilhada do desígnio porco,
o teu pasmado olhar de peixe morto.

Sete sonetos em estado de graça, in Exílio, 1983.

domingo, 25 de outubro de 2009

Soneto do amante exemplar




Roubei o coração de mil donzelas,
cujo sexo devoro com funesto
anseio, as muito feias e as mais belas.
Não sobrará nenhum mínimo resto.

Cozinho a todas numa só panela.
Ah matronas, não digam que eu não presto!
Sou o príncipe dessa grã costela,
que a Deus e ao Diabo juntos eu empresto.

Oh carne quente, membro fumegante.
Quero todo prazer e toda dor.
Eu gozo com a força de um gigante.

Pouco me importa que pareça cômico!
Entre as coxas mergulho com furor
e de graças me inundo, como um vômito!

Sete sonetos em estado de graça, in Exílio, 1983.

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Soneto do bêbado sonhador




Como é bom estar bêbado ao luar
uivando como um lobo triste ou louco,
sofrendo a dor maior e achando pouco,
ansiando por morrer e por matar.

A mulher do vizinho vou amar
e me sinto uma mosca amando um touro:
a dona é uma baleia, é um tesouro
e me entrega o ouro muito devagar.

Vendo a minha alma ao diabo por milhões
e energia de estrondo aos meus culhões.
Tudo é orgia, a vida me repete.

... O diabo deu-me o cano e despedi-o.
Eu mesmo bebo e minhas luas crio,
com meu umbigo frio ninguém se mete.
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segunda-feira, 7 de setembro de 2009

Soneto do sol da meia-noite



Gosto do teu perfume vagabundo,
excita-me esse cheiro nauseabundo.
Tua nudez mulata, saborosa,
imaginá-la apenas, já se goza.

Eu possuo o teu corpo delirante,
arfando numa cama de bacante.
Ondulas como uma serpente, suando,
num incessante orgasmo agonizando.

Tua volúpia trêmula de medo
me transforma num lúbrico morcego.
Quero os dentes cravar com toda fúria

no teu pescoço, seios, sexo e boca.
O teu sangue fervente de luxúria
quero sugar até a última gota.

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Sete sonetos em estado de graça, in Exílio, 1983.

terça-feira, 1 de setembro de 2009

Soneto do burocrata gentil

Eu quero o meu enterro com desdém,
o público virando-me o nariz,
cuspindo no caixão, como convém
a quem de todos foi o mor juiz.

Meu enterro... Que eu seja aniquilado!
Para que nada reste do meu corpo,
que sofreu um destino mais que torto.
Quero tudo, alma e fezes, bem queimado!

Os ideais, mentira! Que um defunto
conhece mais que o mundo inteiro junto,
e eu sei de todos toda a falsidade.

Raio de vida, como é boa a morte!
Santo Diabo, eu não quero um outra sorte
que o frio do nada, a fria eternidade.

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Sete sonetos em estado de graça, in Exílio, 1983.

terça-feira, 11 de agosto de 2009

Soneto do psicanalista sutil



Muito se definiu o grande amor,
luz da tua e da minha vida amara!
Porém, o que de fato bem se encara
é essa nossa vidinha sem sabor.

Sai da cozinha, meu bem, lava a cara
do alho e cebola, tira esse fedor.
E depois, para a cama, com fervor!
Sempre é a hora do gozo, que não pára.

O resto é um saco, não se agüenta em pé
seja rica a panela ou santa a fé.
Não desfaças do amor, que é tudo, oh minha!

Nada e tudo que cada um tem e tinha,
uma coisinha reles, ordinária,
o amor é uma neurose necessária.

in Exílio, Massao Ohno Editor, SP, 1983.

terça-feira, 28 de julho de 2009

Desaforismos de Gregório Vaz

1. Sua vaca! Você ficaria brava, magoada com seu amado por ser chamada de vaca? Não deveria. Vinicius de Moraes fez um soneto lindo, chamando a amada de vaca com ele na cama. Drummond, num de seus melhores poemas, fala de um cavalo solto pela cama sobre o peito de quem ama, pensando certamente, com carinho, em Dolores, aliás, em Lígia, como uma vaca na cama. E Mário Quintana, tão suave, delicado, não diz num poema: “Maria, por que não és uma vaca? A vida seria muito mais simples”? Ah, não falem mal das vacas.
2. Minha querida! Minha amada! A sua cara azeda ilumina a sala, a casa, a minha vida inteira.
3. Uma vez eu vi um homem na calçada com os miolos de fora. Inacreditável que possa ser inteligente um ser com uma bolha de pus nojenta como essa na cabeça.
4. Eu amo a violência, o sangue derramado, quente, borbulhante. Eu sou um homem.
5 . Enquanto latem os cães, discutem os filósofos, os cientistas e todos os que arrotam sabedoria, a vida passa.
6. O homem pode estourar de riso como o idiota que é, mas não morrerá mais feliz por isso.
7. Você não sente nojo de si mesmo quando vê um mendigo cheio de chagas na rua e percebe que você não é aquele mendigo?
8. A maior moralista que eu conheci era dona de um bordel.
9. Defendo com unhas e dentes as minhas neuroses: somente elas me mantêm de pé.
10. Somos sonhadores melancólicos contemplando o nosso próprio crepúsculo
11. Toda obra deveria ser destinada ao fracasso, porque tem por sujeito e objeto o homem, que é a encarnação do fracasso.
12. Conquistamos o espaço, queremos conquistar o universo, enquanto apenas navegamos na caverna onde mal perdemos o rabo.
13. Nada mais fácil para desmoralizar um homem do que acariciar o seu ego.

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Gregório Vaz é autor de uns 400 e tantos aforismos (ou desforismos, termo cunhado por meu conterrâneo Mário da Silva Brito - sim, ele por acaso nasceu em Dois Córregos, SP, onde eu nasci acompanhando fundas raízes familiares). Acha que poucos valham a pena: não vamos contradizê-lo.

segunda-feira, 20 de julho de 2009

Em busca do corpo impossível



Performance que integra a série EM BUSCA DO CORPO IMPOSSÍVEL, com apresentação do alterego e do DIAS com os poemas da CIDADE PODRE e CANÇÃO DO EXILADO, em homenagem ao poeta bauruense josé carlos mendes BRANDÃO e gregório VAZ. Realização da Faculdade de Filosofia e Ciências da UNESP de Marília.

quinta-feira, 9 de julho de 2009

Sublimação







 


Um piolho
mil piolhos me roem
o cérebro. Em frangalhos
serei eu mesmo, o que escrevo
ou o que vive o estupor?
A carne é fraca, mas espúrio
é o espírito. Alcatra, coxão-
mole, a costela
do homem, a coxa
da mulher. Filho
dessa coxa, onde a mágica
ainda vive, e senhor, senhor
embora o decreto
da morte dos mitos
– ou por isso mesmo
a cinza
de todos os ritos
do sagrado
a podridão, podridão
sem mais nada. Nada. A chuva
derretendo-se
sobre a cidade, a cidade
derretendo-se em lodo, e bocas-
de-lobo engolem o nojo, o feto
burguês, o consumo
o que me consome. Sublimação!
Sublime a beleza, rosa
ou cegueira: crio
vivo o grito da criação.
Todo discurso é falido mas eu amaria
meus piolhos, meus queridos
piolhos fedorentos, meu cérebro
fedorento, a borra
fedorenta e gloriosa borra, meu resíduo
mais íntimo
livre, gloriosamente
para o que der e vier, livre.

segunda-feira, 6 de julho de 2009

O poeta e seu tempo



Morro ontem, renasço amanhã
e a todo vapor
uma flor na boca
uma lagartixa nos cabelos
irracional e belo como a primeira manhã
a primeira mulher, o primeiro poema.
Renasço com asco e faço
de um estopim na perna de um pato
de uma pomba
a beleza do amor que morre
e ressurge das cinzas.
Morro triunfalmente
e volto, corro pelas ruelas de Paris
Estocolmo e Lisboa gris.
O poeta mexe com seu pauzinho torto
a sopa de palavras e o poema
é a única realidade provável.
Morro e renasço
estúpido, estupendo, fenomenal.
Vou e fico
com cupido, mil estampidos
e as cáries dos dentes da Mona Lisa.
As rugas, perucas, sanguessugas
babando a loucura
lógica e pura.
Viva a poesia! Morram
os urbanos comedores de olhos!
Abaixo tudo que está acima
da sensibilidade e seus guizos
de festa ingênua, bucólica
e fora com todas as cólicas!
Civilizações! Saiu tudo pelo avesso
o defunto nem está fresco nem seco
mas é defunto, enorme e imundo presunto
mundo mundo sem rima nem cão.
Viva o sonho
o gato, a lebre, a presunção.

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in Exílio, 1983.

terça-feira, 30 de junho de 2009

Tinha um osso no meio do caminho



Tinha um osso no meio do caminho
era um osso nu
brilhava ao sol
tinha sido roído por um cachorro faminto
até o osso

Não era um osso humano
eu sabia
mas fervi os miolos me questionando e
se fosse meu aquele osso
da minha coxa ou da canela?

Era um osso feio pra caramba
se fosse meu continuaria a ser feio
assim é a vida, o ser humano é feio
depois de morto
quando osso
quando já partiu para o nada

Ó nada, rogai por nós
ó nada, tende piedade de nós.

sexta-feira, 26 de junho de 2009

O comedor de urtigas

Eu já fui um comedor de urtigas.
Não propriamente das folhas de urtiga,
que provocam a dor, aquele rascar na alma,
mas de flores de urtiga, as sublimes.

As flores de urtiga são deliciosas.
Ou eram, mas todo passado é presente.

As flores de urtiga são rosadas
e sabê-las tão perto da dor, que prazer!
Eu era criança, mas juro que era um prazer sexual.

A memória das urtigas na língua leva ao êxtase,
outro nome do orgasmo.

A guilhotina

Não sou muito bom da cabeça
nem entendo de profecias
mas sei que o mundo vai-se acabar
ou talvez já se tenha acabado.

Os homens são muito distraídos,
nem percebem o que aconteceu
ou com certeza vai acontecer.

Ouço um gato uivando no escuro
(parece uma criança esganada,
mas é apenas um gato apaixonado)
e isso é um sinal claro

de que o mundo vai-se acabar
ou talvez já se tenha acabado.
Estou me repetindo, mas o mundo
é repetição. Não existe outra verdade.

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