quinta-feira, 31 de março de 2011

COMO UM POEMA


A minha dor é do tamanho duma porta.
Não me peçam paciência.
A minha dor é do tamanho dum bonde.
A porta está fechada como a de Kafka. Se era
para ele que se abriria, é para mim que nunca se abrirá.
Até prefiro dizer, com Fernando Pessoa, que vivo
ao pé de uma parede sem porta.

O bonde veio e me atropelou, não sobrou nenhum
caco inútil do que eu fui.Desespero é o nome
da minha pátria, da minha língua, da minha mudez.
Para que me serve o amor? O ouro? A rosa?
Eu quero o mar, a areia das praias sem nome,
as árvores, os pássaros, as frutas maduras.
Eu quero tudo que é meu porque eu perdi.

Eu me reservo a noite e o seu rude silêncio.
Eu me reservo a pérola negra e a sua concha,
as cavernas submarinas de algas e de âmbar.
Eu me reservo o silêncio de uma pedra dura
conquanto perfeita, absoluta e muda, como um poema.


segunda-feira, 28 de março de 2011

TENTAÇÃO


O poema destrói a estrutura do meu corpo
e o mais íntimo de mim, o que eu sou, no corpo.

O poema é uma pedra sobre o meu corpo.
É feito de palavras, que são pedras,
e me cobrem, completamente.

Como conformar-me à forma alheia
no espelho, como se fosse minha?

A palavra, com sua carga de inutilidade,
me tenta, quer reerguer-me de minhas ruínas.

As ruínas são o meu próprio ser
ainda que ruínas do meu próprio poema,
cacos de palavras, pedras sobre pedras.


OS RECÉM-NASCIDOS


Os recém-nascidos choram no deserto.
Tremendo de frio,
quase mortos de fome e sede,
contemplam o futuro do universo. 


sábado, 26 de março de 2011

NADA ME DÁS



Nada me dás, tudo me tomas.
A piedade secou.
Nem somos mais humanos.
Um lobo vaga na noite
com a nossa sombra.



O LANCE DE DADOS



Num lance de dados
Perdi o meu dia.
Mas o que é perder
Ou ganhar na vida?

Num brinde ao acaso,
           O jogo continua.

           (Um lance de dados
            não abolirá o azar.)




quinta-feira, 24 de março de 2011

ÀS VEZES NÃO ME BASTA A MORTE


Às vezes não me basta a morte.
Não me basta saber um pedaço de terra
definitivamente meu.

Às vezes não me basta o azul.
Estou de tal modo vivo
que o meu corpo não me contém.

Às vezes não me bastam os olhos.
Não me bastam os pulmões.
Não me basta um poema.

As palavras explodem no meu peito.
A terra explode nos meus olhos.
Sou apenas uma forma luminosa.


terça-feira, 15 de março de 2011

OS JORNAIS ANUNCIAM O FIM DO MUNDO


Os jornais anunciam o fim do mundo.
Todos os países estão em guerra.
Os homens sofrem doenças incuráveis.
A água da terra está contaminada.
O alimento é insuficiente e impróprio.

Os jornais sempre falam a verdade.
O mundo vai se acabar.
As flores murcham.
Os pássaros caem das árvores.
As árvores secam.
O ar é irrespirável.
As usinas atômicas explodem.
As estrelas se apagam.
O sol seca as geleiras, os mares e o coração do homem.

O mundo agoniza.
É o que dizem os jornais, que não mentem jamais.





segunda-feira, 14 de março de 2011

14 de março - Dia da Poesia - no fim dos tempos


O LEITOR E O POETA

O leitor gosta de um poema
porque pensa que foi ele que o escreveu.
O melhor poeta é aquele que desperta
o poeta adormecido no leitor.

O poeta vê as gotas de chuva na janela
e nas folhas do abacateiro, viu à noite, antes da chuva,
as estrelas multiplicando-se e apagando-se, como numa grande brincadeira
– e escreve como se fosse o leitor.

O poeta é o mais abnegado
e desprendido dos seres: anula-se para que o leitor viva.

O poeta morde o lábio, morde a língua e sangra.
A poesia é feita de sangue, não de palavras. Estas são
um disfarce para a dor, cacos do espelho que chamamos
de poema. O relógio resmunga na parede, como se fosse

dono do tempo. Vai medindo, compassadamente,
a minha morte individual, diz o poeta, pensando
na morte coletiva. O poeta pensa no seu irmão, o leitor,
tão íntimo e estranho ao mesmo tempo. O leitor que lê

o poema como se tivesse ele próprio traçado, linha a linha,
aquelas linhas, aquelas palavras, aquelas imagens
que pulsam no bolso e, por pouco, não o derrubam.



NO FIM DOS TEMPOS

Talvez haja mil leitores entre um milhão de pessoas,
mas haverá cem leitores de poesia entre mil leitores?
Haverá dez leitores de poesia entre mil leitores?

Quantos leitores de poesia haverá entre mil poetas?
Os poetas leem os poemas dos outros poetas?

Sic transit gloria mundi – assim os poetas são:
passageiros, estranhos e indiferentes passageiros.


sábado, 12 de março de 2011

Poesia pura como o fim do mundo


A poesia é uma arma,
um revólver, digamos.
Você enfia o cano na boca,
nem se ouve a explosão.

Você está cego, mais que cego, morto.
Nem pode apreciar o espetáculo.
Não poderia haver maior iluminação.
Poesia pura como o fim do mundo.
Quer dizer, o mundo para você acabou.

Agora começou o êxtase.
Pena que você não possa senti-lo.

Quando usaremos a poesia como uma arma?
Alguém entende o que isso quer dizer?

sexta-feira, 11 de março de 2011

Preparativos para o fim do mundo



O poema cresce independente de mim.
Eu o escrevo, escolho as palavras, as poucas imagens,
procuro controlar minha ânsia de metáforas.
Eu o escrevo, mas ele não tem nada a ver comigo.

O mundo lá fora é o que interessa.
O poema me expulsa do calor do ninho.
O poema me expulsa dos ovos com a vida regurgitando.
Há uma guerra lá fora e só essa guerra interessa ao poema.

Se uma gralha grita, é para estourar a paisagem.
Se o melro voa de um lado a outro do rio,
é para me lembrar que tudo passa,
que não é este lado
ou aquele que interessa.
Aliás, nada mais interessa.

Interessa o que está fora do meu controle.
Um frio me gela a espinha.
Parece que vou quebrar.
O meu poema caminha na rua,
quebrando o cimento
e a insensatez humana,
com a sua carga de dor
e estupefação.
É como o fim do mundo.


terça-feira, 8 de março de 2011

POEMA DE AMOR




Tomei o coração na mão como uma maçã
e cravei os dentes vermelhos. Estava em êxtase,
transverberado, com toda a poesia do mundo
escorrendo dos beiços, cantando na língua.

Eu a beijei com sofreguidão, como uma bicicleta.
Ela floresceu dentro de mim, com tanto perfume
quanto um jasmineiro à noite. Mas era apenas
a poesia como um cavalo domado sob os lençóis.



quinta-feira, 3 de março de 2011

ASPIRAÇÃO (dois poemas casuais)


 
    Pêndulo

A areia da ampulheta
como a areia do mar
(sal e sol)
me sepulta.


 
                                  Andorinha

Uma andorinha não faz verão?
A andorinha de Manuel Bandeira tão à toa?
Ou a minha andorinha com o sol nas asas
pegando fogo, queimando as penas e o céu?

A minha andorinha faz verão, inverno, primavera,
menos outono. No outono as folhas caem
e a minha andorinha dorme, não trabalha
para não botar fogo nas saias das árvores.

Andorinha, andorinha, passei a ferro e a fogo
os dias inúteis, mas belos como a saudade
da aurora da minha vida. Piu, piu!



terça-feira, 1 de março de 2011

TARDE





TARDE

Meu coração sangra
a poesia bateu asas
da árvore da tarde

Ficaram uns fiapos
do vestido dela
nos galhos secos

O rio não parava
de passar

A primeira estrela
floriu.


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