quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Um poema de amor

Finados

Hoje é dia de finados
Você passeia pelo cemitério procurando meu túmulo

Choveu faz sol o dia está agradável
Você sente o perfume da morte

São as flores são as velas é um indefectível
Cheiro de carne que já não é

A carne dos mortos engorda a terra
E a terra é sempre magra

Fende-se parte-se em mil ranhuras
Já não se sabe o que é terra o que são ossos

A terra protesta os túmulos protestam
Muita festa e muita tristeza se fundem

Somente você não está triste
Você sabe que eu não estou em nenhum desses túmulos

Você procura o meu túmulo por procurar
Por uma diversão perversa

Eu deveria estar aí
Eu deveria estar embaixo da terra

Eu deveria ser um punhado de ossos
A minha alma mortal

A lembrança da minha presença
Fogo-fátuo espiralando-se no ar

A minha presença gorda no mundo
Dilui-se nas ruas do cemitério

Onde não estou
Você está sorrindo para o meu túmulo etéreo

A minha ausência estúpida
Ainda não é a hora do olvido

As águas passam debaixo das pontes
O vento assobia em algum sótão impalpável

Estou no sótão estou entre os afogados
Sou um homem entre os homens

Uma bunda ainda me excita
A língua o beiço vermelho

A mulher me justifica
Me derruba me anula

Você é sábia
O olhar conhece

As unhas as garras o bico adunco
A mulher domina

O mundo inútil
O corpo inútil do homem

Já não conheço as trevas
Já apaguei as luzes todas e vejo

O que existe para ser visto
Pairo

Não tenho carência de prêmios
Meu pai apontava os mortos

Carregava os mortos no bolso da camisa
Do lado do coração

Meu pai me ensinava lições de morte
Com orgulho

Estes sãos os meus mortos como que dizia
E acarinhava cabelos e ombros íntimos

Os mortos não carecem de prêmios
O maior prêmio da vida é a morte

Eu tenho orgulho da minha morte
Galardão

Mel na sombra sorvo tanto sol
Anoiteço na teia de aranha

A invenção do dia
No corpo da mulher

Eu me entrego à abelha-rainha
A mulher me consome no jardim

No mar sem fantasmas
No meio da rua

Um escorpião me assassina
O corpo vibra

O corpo explode com o veneno
Amor é grande

Você passeia pelo cemitério
Para me lembrar

Meu corpo lhe pertence
A alma a vontade fraca

As suas palavras cantam
“Você morreu, cara”

“Cara” – Nunca ninguém assim
Declarou o seu amor

Nem era preciso
Ter voltado.

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Um poema extemporâneo.
Mas fazer o quê! Eu, Gregório Vaz, sou extemporâneo.

Como não estamos em Finados
leia como um poema de amor.

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quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Fênix

As pedras caem sobre meu corpo.
O edifício desmorona sobre meu corpo.
Eu sufoco sob as pedras do edifício,
sob a terra, o pó, os ferros invisíveis
da grande pirâmide que cai sobre mim.

Que sou, sob essa montanha de pedras?
Que sou, que não respiro?
Eu, animalzinho indefeso sob o peso do mundo.
Eu, que não penso, já não sinto, objeto inútil
como qualquer objeto.
A grandeza humana evapora-se
quando você deixa de ser homem e é coisa
entre as coisas.

Você morre como uma fruta morre.
A fruta aduba a terra
e você aduba a terra
e isso é todo o sentido de ser fruta ou homem.

Morrer sem dar por isso foi o meu prêmio.
Morrer, mas eu voltei.
Não estava bem morto.
Sou o cara imperfeito
até na morte.

Ainda sinto as pedras caindo sobre mim.
Inerme como um pequeno inseto.
Insignificante como um pequeno inseto.

Sem dor,
sem nenhuma idéia na mente que se apaga,
sou o obejeto que se anula
porque objeto.

Eu soube que o mundo ruíra,
só muito depois eu soube que o mundo ruíra.
Um mundo de pedras desaba sobre meu corpo inútil.
Só muito depois me disseram: "Você está vivo,
cara."

Eu, que nunca me dera conta de estar vivo,
agora soube que morrera
e que estava vivo.

Agora que morrera,
eu estava vivo.

(Mas a chuva cai lá fora, longe do meu corpo,
inútil.
O espelho não me serve de nada,
é outrem quem eu vejo.
O meu cão lambe as mãos de outrem.
Eu me ajoelho diante do altar de um deus
de outrem, meu Deus,
eu que perdera a fé por desfastio,
ai, meus penates.)

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terça-feira, 14 de setembro de 2010

As botas do diabo

Tinha um pouco de bosta na minha bota
quando eu morri.

E eu nem usava botas.
Meus pés eram macios

no escuro
rumo a lugar nenhum.

Os quadros tremem na parede,
do outro lado o vazio.

O assoalho é muito velho,
a casa toda é muito velha,

As tias velhas,
os parentes muito antigos,

os parentes pendurados das paredes,
a morte escorrendo das paredes

com a pátina verde e branca
e o sangue vermelho.

Ficou o sangue
que não se apaga.

Estou distante,
já não distingo o frio da noite.

Não sei dizer o que aconteceu.
Talvez nada tenha acontecido,

um cochilo,
piscar de olhos,

história que me contaram,
angústia alheia.

(A nossa própria morte
não nos pertence.)

Mas eu acordei.
Foi um sonho leve. Mas eu acordei.

Eu me levantei de dentro do sangue
que me envolvia.

Tanto sangue
sobre meu peito.

Tanto sol e sangue
sobre minhas pálpebras.

Foi um sonho leve.
Sem pesadelos.

Eu acordei feliz.
Não pensei na morte ou na dor.

Nenhum desespero
no bolso das calças.

Eu estava leve
como um idiota feliz.

Apenas um pouco de bosta na minha bota
me lembrava a morte.

(Eu caminhara sobre as águas
com as botas do diabo.)

Ficou um perfume.
Ficou uma cor.

Ficou um dar de ombros.
Ficaram os dentes amarelos.

E ficou o pé no saco:
a morte é foda.

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