terça-feira, 14 de setembro de 2010

As botas do diabo

Tinha um pouco de bosta na minha bota
quando eu morri.

E eu nem usava botas.
Meus pés eram macios

no escuro
rumo a lugar nenhum.

Os quadros tremem na parede,
do outro lado o vazio.

O assoalho é muito velho,
a casa toda é muito velha,

As tias velhas,
os parentes muito antigos,

os parentes pendurados das paredes,
a morte escorrendo das paredes

com a pátina verde e branca
e o sangue vermelho.

Ficou o sangue
que não se apaga.

Estou distante,
já não distingo o frio da noite.

Não sei dizer o que aconteceu.
Talvez nada tenha acontecido,

um cochilo,
piscar de olhos,

história que me contaram,
angústia alheia.

(A nossa própria morte
não nos pertence.)

Mas eu acordei.
Foi um sonho leve. Mas eu acordei.

Eu me levantei de dentro do sangue
que me envolvia.

Tanto sangue
sobre meu peito.

Tanto sol e sangue
sobre minhas pálpebras.

Foi um sonho leve.
Sem pesadelos.

Eu acordei feliz.
Não pensei na morte ou na dor.

Nenhum desespero
no bolso das calças.

Eu estava leve
como um idiota feliz.

Apenas um pouco de bosta na minha bota
me lembrava a morte.

(Eu caminhara sobre as águas
com as botas do diabo.)

Ficou um perfume.
Ficou uma cor.

Ficou um dar de ombros.
Ficaram os dentes amarelos.

E ficou o pé no saco:
a morte é foda.

________

2 comentários:

  1. Ah! Gregório!

    Estava com saudades dessas imagens místicas, deste falar doce, desta morte bonita!

    Tem gente que não acolhe a morte como parte da vida, mas tu Gregório, faz da morte o alimento para uma outra vida.

    Certamente mais bonita!

    BRAVÍSSIMO!

    Vá ser poeta assim lá.....


    Beijos

    Mirze

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