sexta-feira, 29 de abril de 2011

A POESIA PURA


 Vazei os olhos,
cortei as mãos e os pés,

arranquei a língua,
furei os ouvidos, etc.

Quando não tinha mais nenhum
contato com o mundo,

podia compor a poesia mais pura
do mundo.


quinta-feira, 28 de abril de 2011

ELE-ÁRVORE


Nasceu uma árvore
onde plantaram o seu corpo.
Nasceram flores e frutos de luz
da árvore da poesia.



quarta-feira, 27 de abril de 2011

LEI DA VIDA


As coisas sempre podem piorar,
disse alguém.

Não se desespere, não adianta
se desesperar: as coisas

sempre podem piorar.

É a inexorável lei da vida.
A esperança é a última que morre,

mas, enquanto isso, lembre-se:
as coisas sempre podem piorar.

Gregório Vaz


terça-feira, 26 de abril de 2011

AS MALDITAS PALAVRAS


Acariciei as palavras
espremi as palavras

saiu sangue
tomei um banho de sangue.

Nunca me senti
tão sujo.


domingo, 24 de abril de 2011

ANÚNCIO DO FIM DO MUNDO


O mundo vai se acabar!
– grita um anão com um tambor
e um anjo na mão.

Amanhã vai ser o fim do mundo!
– grita a mulher nua pousada na árvore
como um pássaro.

Ontem foi o fim do mundo!
– grita o velho louco com um gramofone
e um caqui na boca.

As crianças brincam nas ruínas
das usinas atômicas – e já não precisam
de nenhuma palavra.


quinta-feira, 21 de abril de 2011

PLENITUDE


Não sei como começa um poema,
não sei como termina.
E afinal, nem sempre o começo é o começo
e o fim é o fim.

E o recheio?
O que vem dentro é o que importa.
O fim e o começo muitas vezes se contradizem,
mas o recheio é música pura para os ouvidos
e para o corpo todo.

Nem todo poema começa com uma maiúscula,
nem todo poema termina com um ponto final.
No princípio da criação já havia uma nota ecoando
– e essa nota é uma melodia completa.
No fim da criação, continua-se a ouvir a melodia.

Mas então o poema é música?
Pode ser, mas também pode ser um gemido.
Talvez a ausência de ruído.
Mas nunca será o nada. O poema será sempre
o oposto do nada. O poema é a plenitude.


quarta-feira, 20 de abril de 2011

COTA


Estendo a minha mão
à porta da casa dos homens.
Também quero minha cota
de pão e solidão.





segunda-feira, 18 de abril de 2011

RESÍDUO


Queimei o meu caderno de poemas.
Queimei o meu diário.
Queimei o meu álbum de fotografias.

Os maiores poetas queimam as suas obras
ou mandam queimar – mas não são obedecidos.

Os maiores poetas se queimam com as suas obras
ou são queimados vivos com elas.

Os poemas, a memória, as imagens são cinza
que o fogo consome.

De nós nada mais restará que a cinza
– uma pouca cinza fria.




domingo, 17 de abril de 2011

A AGONIA DA POESIA


Faz muito tempo que a poesia agoniza.

É admirável que resista tanto.
Os homens morrem,
as cidades morrem,
as árvores morrem.
Por que é que a poesia ainda agoniza?

Ninguém gosta de poesia.
É uma inutilidade.
Velharia.
De quando havia sensibilidade,
valores morais,
ou coisa que o valha.

A civilização morreu.
Por que é que a poesia teima em resistir?
Contra toda expectativa,
contra a dor,
contra o amor,
a poesia resiste.

Até quando, meu Deus?

Contra a ausência de Deus, a poesia resiste.
O homem já morreu, nem Deus lhe pode valer,
mas a poesia resiste.

Com o último tição da casa do homem
acendo o meu charuto – são belas as estrelas
do meu charuto – e contemplo

a agonia da poesia. 


sexta-feira, 15 de abril de 2011

Os recém-nascidos


Os recém-nascidos choram no deserto.
Tremendo de frio,
quase mortos de fome e sede,
contemplam o futuro do universo. 



terça-feira, 12 de abril de 2011

A ESCOLA DE REALENGO


Eram terras do rei onde havia um engenho,
o Real Engenho, de cuja abreviatura
REAL ENGº o nome do bairro: REALENGO.

No Realengo havia uma escola ideal
– era ideal – onde um louco entrou
e matou doze crianças, treze com ele mesmo.

Admirável mundo novo onde se ensina
tristes lições de vida e morte banal. 


                           

segunda-feira, 11 de abril de 2011

O MASSACRE DE REALENGO


 Disse que ia fazer uma palestra
e puxou dois revólveres
– as armas falam mais alto que a língua.

Atirou sessenta e seis vezes:
doze crianças foram feridas,
algumas gravemente,
e outras doze caíram mortas na hora.

Um policial lhe deu um tiro na barriga,
ele suicidou-se em seguida.

Na mochila um papel com instruções
de como devia ser enterrado:
sem que mãos impuras o tocassem.

A dor nem a loucura justifica.
As crianças morreram na flor da vida,
como flores cortadas antes da hora.


domingo, 10 de abril de 2011

PREFIRO NÃO


 Como Bartebly preferiria não fazer o que tenho que fazer.
Como Bartebly preferiria não fazer, simplesmente,
sem explicação alguma.
Um piparote para as etiquetas.
Sei que Bartebly não falava em etiquetas,
eu preferiria não falar e não etiquetar.
A vida é etiquetada demais.

Bartebly era um escriturário que deixou de escrever.
A vida não tem escrita demais?
Para que tanto escrever?
Os poetas querem criar imagens deste mundo,
imagens de um outro mundo apenas imaginável.
Tudo seria bem mais simples se ninguém mais escrevesse.
Não vivemos fazendo cópias de cópias de cópias?
Não podemos aprender com um personagem de ficção,
um Bartebly, a dizer não?

O mundo ainda não é Wall Street, mas um dia será.
Por que a pressa, meus irmãos? Digamos não.
Seremos todos burocráticos? Preferiria não.
Prefiro não ir, prefiro não falar, prefiro não escrever.
O que é que eu tenho a ver com a organização moral do mundo?
Devo seguir os ditames, os imperativos da minha consciência?
Preferiria não. Prefiro não. Wall Street que se dane.

Sentar-me atrás de uma escrivaninha e escrever?
Salvarei o mundo se continuar a ser um escriba?
O mundo quer ser salvo? O mundo precisa ser salvo?
Adianta salvar o mundo? Conseguirei impedir que o mundo
se transforme em cifras? Conseguirei evitar a destruição
do homem? Não será essa uma impossível salvação?
Diante da angústia que me consome, prefiro não.
Sem quê nem porquê, com meus olhos baços,
com a minha língua trôpega, prefiro não, prefiro não.



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